Artículo

Estudios en Seguridad y Defensa, 13(26), 101 - 123

¿Organizações internacionais e regionaise manutenção de paz: uma nova exceção a proibição geral de uso de forçã?1

Las organizaciones internacionales regionales y el mantenimiento de la paz: ¿una nueva excepción a la prohibición general del uso de la fuerza?

Regional international organizations and the maintenance of peace: a new exception to the general prohibition of the use of force?

RAFAEL ZELESCO BARRETTO2

2 Doutor em Direito Internacional pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Professor Adjunto no Programa de Pós Graduação em Estudos Marítimos da Escola de Guerra Naval (Rio de Janeiro, Brasil).

Recibido: 20 de abril de 2018

Aprobado: 29 de octubre de 2018


Resumen

Este ensayo maneja las capacidades de las organizaciones internacionales con un carácter regional en el mantenimiento de la paz. Busca probar la hipótesis de que la práctica internacional permite la acción coercitiva de tales entidades como una nueva excepción a la prohibición general del uso de la fuerza, más allá de los casos tradicionales, que son acciones del Consejo de Seguridad de las Naciones Unidas o bajo su autorización; y autodefensa individual y colectiva. El tema de este estudio son las operaciones armadas de organizaciones internacionales sin la aprobación del Consejo de Seguridad. Este artículo revisa los permisos de uso de la fuerza previstos en la Carta de las Naciones Unidas. Este texto pretende estudiar la permisibilidad del uso de la fuerza por parte de entidades regionales como tales, no su actuación en otras modalidades del ius ad bellum que también están abiertas a estados singulares. Se concluye que la práctica internacional no permite la acción coercitiva de las organizaciones regionales sin la autorización del Consejo de Seguridad. Dichas intervenciones no pueden simplemente denominarse ilegales, debido a su importante papel en el mantenimiento de la paz y la seguridad regionales.

Palabras claves: Organismos internacionales, Uso de la Fuerza, Consejo de Seguridad.


Resumo

Trata-se de um estudo sobre as capacidades de manutenção da paz de organizações internacionais de base regional. A hipótese que se procura testar é a de que a prática internacional consagraria a atuação coercitiva de tais entidades como uma nova exceção à proibição geral do uso da força, ao lado das tradicionais: atuação do Conselho de Segurança das Nações Unidas ou sob sua autorização, e legítima defesa individual e coletiva. Ou seja, fala-se em operações armadas movidas por organizações internacionais sem autorização do Conselho de Segurança. Para isto, passam-se em revista as hipóteses de permissão de uso da força previstas na Carta das Nações Unidas. Também se mencionam novos casos não presentes na Carta, como o envio de missões de paz, que podem fazer uso da força em defesa de seu mandato, ou a intervenção humanitária, cuja legalidade é fortemente contestada na doutrina. Tais figuras são descritas de modo a verificar se haveria um lugar para a atuação autônoma de entidades regionais em seu seio. Também será útil diferenciar, na leitura deste artigo, as ações coercitivas empreendidas por organizações regionais de intervenções humanitárias, por um lado, e do exercício da legítima defesa coletiva, por outro. A preocupação aqui é metodológica: o objetivo do texto é estudar a licitude do uso da força por entidades regionais enquanto tais, e não sua atuação em outras modalidades do ius ad bellum que também são acessíveis aos Estados singulares. O artigo prossegue elencando ocasiões históricas, a partir da Guerra Fria, nas quais tais grupos de países atuaram enquanto organização sem esperar por uma autorização do Conselho. Nota-se que, durante a Guerra Fria, os Estados não propunham seriamente um direito de ação coercitiva autônoma para as entidades e pactos regionais, limitando-se a utilizá-los quando lhes era conveniente para dissimular seus reais propósitos. Com o fim daquele período, dois eventos podem indicar uma alteração na prática estatal: a atuação da OTAN no Kosovo e as intervenções promovidas pela organização africana ECOWAS em alguns de seus filiados. Após estudar as duas ocasiões, conclui-se que a prática internacional não compactua com uma ação de organizações regionais sem autorização do Conselho de Segurança, mas que, por outro lado, tais intervenções não podem ser ditas ilegais sem mais, haja vista o relevante papel que desempenham na manutenção da paz e segurança regionais. Propõe-se uma série de critérios para determinar, em cada caso, o grau de legalidade de uma tal ação.

Palavras Chaves: Organizações internacionais. Uso da força. Conselho de Segurança.


Abstract

This essay handles the capabilities of international organizations with a regional character in the maintenance of peace. It seeks to prove the hypothesis that international practice allows for coercitive action of such entities as a fresh exception to the general prohibition of the use of force, beyond traditional cases, which are action by the United Nations Security Council or under authorization thereof; and individual and collective self-defence. That is to say, the subject of this study are armed operations by international organizations without Security Council approval. Therefore, this article reviews the permissions for use of force provided for in the Charter of the United Nations. Further, it mentions some new cases not seen in the Charter, such as peacekeeping missions and humanitarian intervention - whose legality is contested in doctrine. These institutions are described in order to verify whether there is a place for autonomous acting of regional entities in them. Readers are also advised to distinguish between coercitive actions by regional organizations from both humanitarian interventions and the exercise of collective self-defence. This is a methodological concern: this text aims to study the permissibility of the use of force by regional entities as such, not their acting in other modalities of the ius ad bellum which are also open to singular states. The article goes on listing some historical ocasions, from Cold War on, where such groups of countries have indeed taken action without waiting for a Council authorization. It is to be noted that, during Cold War, the States did not seriously stand for an autonomous right of coercitive action for regional entities and agreements. They rather limited themselves to make use of them when convenient in order to dissimulate the real intentions underlying an intervention. With the end of that era, two events may show a change in state practice: NATO’s Kosovo campaign, and the interventions captained by african organization ECOWAS in some of its member states. After reviewing both situations, conclusion is that international practice does not allow for coercitive action by regional organizations without Security Council authorization. On the other side, such interventions cannot be simply termed illegal, because of their important role in the maintenance of regional peace and security. Therefore, this essay sets forth some criteria in order to define the level of legality of such an action.

Keywords: International Organizations, Use of force, Security Council.


Introdução

O artigo 52 da Carta das Nações Unidas prevê a existência de “entidades regionais” destinadas a manter a paz e a segurança internacionais em nível regional e dotadas de capacidade para empreender “ações regionais”. Na sistemática da Carta, tais organizações se encontram claramente subordinadas ao Conselho de Segurança das Nações Unidas (CS), responsável por chancelar qualquer medida coercitiva que estas venham a tomar. Contudo, a partir do pós-Guerra Fria, intervenções foram levadas a cabo por duas destas organizações sem aval prévio do Conselho de Segurança. Enquanto que a Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) acendeu controvérsias e inaugurou novos tópicos de discussão com sua atuação no Kosovo em 1999, as operações da Organização Econômica dos Estados da África Ocidental (ECOWAS) mereceram divulgação consideravelmente menor. Contudo, a entidade africana atuou por algumas vezes sem autorização prévia do CS, tendo intervindo em conflitos na Serra Leoa, Libéria, Guiné Bissau e Costa do Marfim nas duas últimas décadas.

Este texto se propõe a analisar se a atuação de organizações regionais sem fulcro em permissões do Conselho de Segurança pode ser interpretada como um novo caso de uso lícito da força. Para isso, primeiramente serão passadas em revista as hipóteses em que a coerção armada é tida como legítima no âmbito da organização universal. De modo a oferecer um panorama amplo que permita determinar se há espaço para intervenções de organizações regionais no direito internacional, também se estudarão brevemente situações de legalidade duvidosa perante a Carta, como o envio de missões de paz sob comando da ONU, que já conta com assentimento geral por parte da comunidade internacional, e as intervenções humanitárias, muito mais discutidas. Em seguida, considerar-se-ão os casos históricos nos quais organizações internacionais de base regional adotaram ação direta em crises localizadas. Nesta ocasião, será examinado se as situações descritas contribuíram para constituir uma prática aceita pela comunidade internacional. Por fim, se buscará traçar alguns critérios para que tais intervenções, quando venham a ser tomadas, possam estar de acordo com o direito das gentes.

O uso da força na Carta das Nações Unidas

A Carta da ONU é extremamente restritiva em relação ao uso da força. Seu comando cardeal em relação ao assunto é o princípio de não intervenção, consubstanciado no art. 2, parágrafo 4: “Todos os Membros deverão evitar em suas relações internacionais a ameaça ou o uso da força contra a integridade territorial ou a dependência política de qualquer Estado, ou qualquer outra ação incompatível com os Propósitos das Nações Unidas.” A interpretação quase unânime da doutrina (Dinstein, 2011) e jurisprudência (Böhlkhe, 2011) é que tal dispositivo possui interpretação ampla, proibindo todo e qualquer emprego da coerção contra outros membros da comunidade internacional.

Os redatores de San Francisco estavam bem conscientes, porém, de que seria utópico esperar por um estado de paz eterna. Desta forma, cuidaram de prever, no capítulo VII da Carta, as hipóteses taxativas nas quais o recurso à força seria compatível com os propósitos das Nações Unidas.

Previstos na Carta da ONU

O primeiro destes casos se encontra na parte inicial do art. 42 da Carta:

No caso de o Conselho de Segurança considerar que as medidas previstas no Artigo 41 seriam ou demonstraram que são inadequadas, poderá levar a efeito, por meio de forças aéreas, navais ou terrestres, a ação que julgar necessária para manter ou restabelecer a paz e a segurança internacionais.

Trata-se do uso da força por parte das Nações Unidas. Nesta hipótese, a ONU empreenderia uma ação armada por sua própria conta, sendo os efetivos necessários comandados diretamente pelo Conselho de Segurança, através de uma Comissão de Estado-Maior estabelecida pelo mesmo órgão (arts. 46 e 47 da Carta). Estas tropas seriam formadas a partir das forças armadas nacionais dos Estados membros que aceitassem firmar acordos de cooperação com o CS (art. 43). Tais Estados deveriam comprometer-se ainda a manter um certo contingente disponível para ação imediata, caso se faça necessário por decisão do Conselho (art. 45).

Como se pode imaginar, todo este tópico é um tributo aos bem-intencionados propósitos dos negociadores de San Francisco, aos olhos dos quais parecia evidente que os diferentes países contribuíssem voluntariamente com a organização destinada a manter a paz e segurança internacionais, e a livrar o mundo do flagelo da guerra. Afinal, recorde-se que, durante a metade conclusiva da Segunda Guerra Mundial, os Aliados se autodenominavam “as Nações Unidas”. Porém, as desconfianças mútuas, o advento da Guerra Fria e a prática do CS, que se mostrou muito mais permeável à influência das grandes potências do que seria desejável, acabaram por fazer com que a única guerra integrada de fato pelas “Nações Unidas” tenha sido aquela encerrada em 1945, na qual a ONU ainda não possuía existência institucional.3 Até o momento atual, nenhum dos acordos previstos pelo art. 43 da Carta foi concluído, e não há previsões realistas para que isto venha a ocorrer.

O artigo 42 parece haver previsto um possível insucesso dos dispositivos acima citados em sensibilizar os Estados. Em sua parte final, o comando dita: “Tal ação poderá compreender demonstrações, bloqueios e outras operações, por parte das forças aéreas, navais ou terrestres dos Membros das Nações Unidas.” Neste caso, não se fala em cessão de tropas pelos Estados membros. O que se tem aqui é a autorização, por parte do Conselho, para que os governos que tiverem disponibilidade - os quais podem ser diretamente designados por Resolução do CS ou não - empreendam por sua conta a ação coercitiva contra o Estado que estiver ameaçando a paz ou segurança internacionais. Tal operação deverá respeitar os limites alinhados na decisão daquele ente central, porém todas as decisões operacionais serão tomadas pelas autoridades militares dos países que enviarem forças.

Trata-se de uma maneira mais suave de possibilitar que a ONU tenha “dentes”, ainda que de modo “ad hoc” e dependente da boa vontade de cada nação para afetar parte de suas forças armadas a uma finalidade decidida pelo Conselho. Desde a conclusão da Carta, todas as operações coercitivas autorizadas pelo aparato de segurança da ONU se desenvolveram desta forma.

Uma variante é prevista no cap. VIII da Carta, pelo qual “o Conselho de Segurança utilizará, quando for o caso, [...] acordos e entidades regionais para uma ação coercitiva sob a sua própria autoridade” (art. 53). A autoridade central também poderá autorizar alguma organização regional específica4 a empregar a força em situação determinada (art. 52). Tal poder do Conselho não levanta, em si, maiores controvérsias, pois a hipótese proposta no princípio destas páginas dizia respeito a casos de confronto com organizações internacionais de base regional que não estivessem autorizadas por aquele órgão.5

A terceira hipótese de uso lícito da força previsto na Carta de San Francisco independe, em um primeiro momento, de deliberação do Conselho de Segurança. Trata-se da legítima defesa, descrita no art. 51 como “direito inerente” dos membros das Nações Unidas. No caso de sofrer um ataque armado, todo Estado terá direito a defender-se, sem necessitar aguardar o sinal verde do CS. Esta faculdade, porém, está sujeita ao exame posterior do Conselho. No momento em que tal órgão decidir encarregar-se do assunto, cessa a liberdade de legítima defesa e o Estado agredido também passa a ficar vinculado por eventuais resoluções que venham a ser adotadas.

De acordo com o texto do art. 51, a legítima defesa pode ser individual ou coletiva. O segundo termo refere-se à resposta contra uma agressão sofrida por outro Estado. É permitido acorrer em defesa de uma vítima de ataque armado, desde que esta a peça. A solicitação do agredido é requisito essencial para a licitude da ação, conforme a Corte Internacional de Justiça já teve ocasião de pontuar no caso “Nicarágua” (Dinstein, 2011).

Com a legítima defesa, esgotam-se as exceções à proibição geral do uso da força previstas na Carta das Nações Unidas - ao menos de modo explícito.

Implícito na Carta da ONU - missões de paz

É verdade que as conhecidas missões de paz das Nações Unidas não envolvem o uso da força, eis que uma constante nas resoluções que constituem tais tropas é a proibição da coerção física, que pode ser empregada apenas “em defesa própria ou do mandato”. Contudo, como na prática surgem diversas ocasiões em que as tropas necessitam empregar a força para defender-se, além de numerosos casos dúbios que se multiplicam na mesma razão em que os propósitos destas missões se diversificam, vale a pena mencioná-las brevemente neste apartado.

Embora a primeira missão de paz das Nações Unidas tenha sido enviada em 1948,6 estas foram empregadas mais fortemente na segunda década de funcionamento da organização, pelo secretário geral Dag Hammarskjold como um meio eficaz de intervir em situações conflitivas, porém onde não havia confrontos abertos, com uma força neutra, respeitada por todas as partes em disputa e de finalidades eminentemente humanitárias. Tratava-se também de contornar a imobilidade do Conselho de Segurança, que era alvo de vetos contrapostos. Quando de seu surgimento, houve certa controvérsia no seio da ONU pelo fato de tais contingentes não estarem previstos no texto de San Francisco. O busílis desfez-se, contudo, assegurando-se ao CS o poder decisório sobre o estabelecimento de missões de paz, sua composição, os termos de seu mandato, sua duração e eventuais renovações, e sua condução ao Secretariado (Böhlke, 2011). Como não se trata de uma força de ataque, as missões de paz não podem ser enviadas sem o consentimento do Estado no qual irão atuar.

Por fim, a dúvida sobre sua compatibilidade com a Carta encontra-se atualmente sanada pelo reconhecimento geral que estas operações recebem, por parte da comunidade universal, no sentido de que cumprem os propósitos das Nações Unidas (Sur, 2004). Como se encontram a meio caminho entre as soluções pacíficas de controvérsias, previstas no capítulo VI da Carta, e as ações envolvendo a força, descritas no capítulo VII, é habitual referir-se às mesmas como baseadas no “capítulo VI e meio” da Carta.

Fora da Carta da ONU: intervenção humanitária

Como se pôde ler, o tratado magno de 1945 busca disciplinar o uso da força através da instituição de requisitos formais para desencadear licitamente a violência. Assim, exige-se a obtenção de maioria qualificada no Conselho de Segurança ou então a constatação fática de um ataque estrangeiro, ou ainda a existência de um mandato do CS que descreva objetivo e limites de uma missão de paz. São todos elementos formais, cuja presença é passível de constatação relativamente fácil. Tal formalismo possui a vantagem de imunizar o sistema de segurança coletiva das Nações Unidas contra influências políticas desmedidas, além de apreciações distorcidas dos fatos. Contudo, o apego às formas pode resultar problemático perante situações nos quais as exigências da Carta não se encontram preenchidas, mas o panorama concreto parece clamar por alguma ação coercitiva. A realidade material, com efeito, é sempre mais rica e imprevisível que as previsões legais.

Parece ser este o caso a justificar as chamadas intervenções humanitárias, destinadas a combater violações graves e disseminadas de direitos humanos da população de algum país causadas por ações diretas do respectivo governo. Vale dizer, os indivíduos se veem perseguidos pela administração nacional que, por outro lado, se guarda de entrar em confronto com algum outro Estado. Supondo que o Conselho de Segurança não utilize a faculdade prevista no art. 39 da Carta e se abstenha de declarar que a situação representa uma ameaça ou violação da paz e segurança internacionais, surge a dúvida sobre a licitude de uma operação armada comandada por um ou mais Estados e motivada pela defesa da população alvejada por seu próprio governo.

É bem claro que tal conduta não encontra guarida na Carta das Nações Unidas, por um lado, nem corresponde ao costume internacional, por outro. A este respeito, destaque-se o estudo exaustivo realizado pela autora portuguesa Maria de Assunção do Vale Pereira (2009), que revê todas as controvérsias históricas nas quais o direito de intervenção humanitária foi invocado para concluir que, na maior parte dos casos, tratava-se de uma utilização espúria deste conceito, sendo que o objetivo principal da intervenção se situava bem longe dos interesses humanitários. Mesmo contando os poucos casos em que a intervenção se deu em prol dos direitos humanos, a prática internacional a respeito está longe de encontrar-se consolidada na admissão deste tipo de emprego da força (Pereira, 2009).

Além da falta de suporte nas principais fontes do direito internacional, apontam-se outros argumentos contrários à licitude da intervenção humanitária, dentre os quais os mais fortes são: o que enfatiza a possibilidade de que, uma vez admitindo-se um tal “direito” no plano teórico, facilitar-se-ia a ocorrência de abusos em seu emprego, eis que só alguns países terão capacidade real para intervir, seja em defesa dos direitos humanos, seja na execução de políticas imperialistas, e outros Estados se encontrariam perpetuamente na posição de possíveis alvos. Nesta configuração, poderia ser difícil analisar se as razões humanitárias invocadas de fato existem na situação, e se não há motivos menos nobres por trás da violação da soberania do país mais fraco.

Partindo daí, outro argumento lembraria que a própria expressão “violações graves e massivas de direitos humanos” apresenta grandes traços de ambiguidade. Realmente, é difícil negar que qualquer governo, democrático ou não, acabe sendo responsável por inúmeras violações de direitos humanos, causadas pelos muitos agentes governamentais e pelas diferentes funções que as administrações públicas vêm assumindo nos últimos tempos. O problema está em determinar a partir de qual patamar se estará diante de uma violação suficientemente gravosa a ponto de chocar a consciência da humanidade e chamar em causa o instituto da intervenção humanitária. Vale considerar que a definição deste limite deveria levar em conta a realidade local e regional, bem como as reais capacidades do governo em questão de lidar com o fato. Muitas vezes, catástrofes humanitárias ocorrem sem que governos frágeis tenham como evita-las ou responder adequadamente. Responder a tais panoramas com a proposta da ação estrangeira armada parece exagerado e levantará objeções de tratamento discriminatório contra os países economicamente menos favorecidos.

Contra a licitude da intervenção humanitária, pode-se alegar também a questão prática, consistente no paradoxo de fazer a guerra para defender direitos humanos. Uma aceitação ampla da juridicidade da intervenção humanitária poderia levar a sua banalização, chegando-se a operações que, embora até possam ser executadas em boa fé, causem um mal maior do que aquele que buscavam evitar. É preciso reconhecer que o “ataque cirúrgico” frequentemente fracassa, causando mortes de inocentes e inúmeros danos colaterais. Há, portanto, todo um aspecto concreto que deve ser levado em conta ao momento de decidir pela licitude da força armada como modo eficaz de combater catástrofes humanitárias causadas por governos soberanos.

Mas, a despeito do que se escreveu acima, a intervenção humanitária não é universalmente condenada hoje, observando-se até mesmo uma tendência a sua aceitação, ao menos entre setores da doutrina internacionalista norteamericana e europeia. Embora o debate não seja objeto deste artigo, vale contrapor a argumentação favorável às razões contrárias desenvolvidas nos parágrafos anteriores. Afinal, a intervenção humanitária é (alegadamente) a mais nova hipótese de uso lícito da força no plano internacional, devendo por isso ser bem compreendida caso se queira estudar o pertencimento de ações tomadas por organizações regionais a este seleto rol.

Em defesa de tal prática, alega-se a questão humanitária: se a população civil de determinado país realmente estiver sendo massacrada por forças do governo, a melhor solução jurídica não pode estar apenas no respeito à soberania nacional, permitindo que as atrocidades continuem. Esta linha argumentativa continuaria afirmando a centralidade do indivíduo e a importância que os direitos humanos assumem na atualidade, bem como a responsabilidade incumbente a todo Estado de tratar sua população dignamente (Barretto, 2012).

A atuação de organizações regionais em crises localizadas

A hipótese testada neste artigo é a de que o uso da força por organizações internacionais em cenários conflitivos dentro de sua região representa um desenvolvimento das exceções à proibição geral do uso da força no plano internacional. Esta seção trata de recapitular as situações históricas mais significativas nas quais tais entidades atuaram com emprego da coerção armada.

Durante a Guerra Fria

A história apresenta algumas cenas de uso da força por organizações internacionais durante a Guerra Fria. À época, via-se uma utilização das entidades aglutinadoras regionais pelos dois blocos em conflito, geralmente de modo a esmagar dissidências nas respectivas esferas de influência. Assim pode ser interpretada a atuação dos países que compunham o Pacto de Varsóvia na crise da Hungria (1956). Apesar de somente o exército soviético ter tomado parte na repressão ao governo húngaro de Imre Nagy, as tropas foram lideradas pelo comandante geral das forças do Pacto de Varsóvia à época,7 e dois dos países participantes do Pacto, Tchecoslováquia e Romênia, se haviam disposto a empregar seus próprios exércitos na operação, o que foi recusado pela União Soviética (Sebestyen, 2008). Uma das razões formais da invasão foi a tentativa da Hungria de retirar-se do Pacto de Varsóvia (Sebestyen, 2008).

O mesmo vale para a resposta do Pacto de Varsóvia à Primavera de Praga, em 1968. Apesar de a URSS ter dirigido a invasão à Tchecoslováquia, na prática, por conta própria, ela justificou juridicamente o evento como uma resposta coordenada dos membros do Pacto aos desvios doutrinários e políticos tchecoslovacos, e a liderança do país vencido, aprisionada e conduzida à força a Moscou, queixou-se aos soviéticos de que seu país fora invadido também pelas tropas dos outros países socialistas (Volkogonov, 2008).

O bloco rival também tinha sua cota de intervenções utilizando organizações regionais. Em 1965, a República Dominicana sofreu um golpe de Estado que conduziu ao poder um grupo de oficiais militares ligados ao Partido Revolucionário Dominicano, de ideologia comunista. Quatro dias após a mudança de governo, os EUA enviaram uma força de fuzileiros navais para proteger e evacuar cidadãos americanos que ali residiam (Pereira, 2009). Porém a tropa não se restringiu a este objetivo, atuando para proteger políticos e militares dominicanos que eram contrários ao governo revolucionário (Pereira, 2009). Passados mais alguns dias, a Organização dos Estados Americanos aprovou uma resolução criando uma “Força Interamericana” composta pelos efetivos militares que já se encontravam na República Dominicana8 - isto é, pelos soldados que os EUA haviam posicionado ali. Em seu ápice, as tropas enviadas pelos EUA somavam vinte mil homens, estabelecendo um controle factual da república caribenha pelos norte-americanos. Embora esta haja sido, na prática, uma intervenção conduzida pela administração nacional de Washington, a mesma foi abraçada pela Organização, que lhe emprestou um verniz de legalidade.

Em pelo menos uma outra ocasião, a política externa dos EUA utilizou a existência de uma organização internacional regional para justificar uma intervenção em Estado soberano. Assim, em 1983, um governo revolucionário da Granada9 sofreu uma invasão americana quando seus ideais marxistas foram percebidos como ameaça de que uma base militar soviética fosse instalada na América Central (Pereira, 2009). Embora a participação de tropas de outros Estados tenha sido subsidiária,10 o fato é que países vizinhos contribuíram para a operação. A diplomacia de Washington argumentou que a ação se dera em conformidade a um pedido da Organização dos Estados das Caraíbas Ocidentais (OECO), da qual a Granada fazia parte (Pereira, 2009). Trata-se, então, de um caso no qual a organização regional utiliza a força mediante requisição de auxílio de um Estado externo, que não participa da mesma. Como reações institucionais, tem-se que um projeto de resolução no Conselho de Segurança que condenava a invasão foi vetado pelas delegações dos EUA, Reino Unido e França, embora projeto semelhante tenha obtido maior sucesso na Assembleia Geral das Nações Unidas, expressando-se aí uma clara condenação a toda a operação (Böhlke, 2011).

Sumarizando o tópico, vê-se que as intervenções capitaneadas por organizações internacionais de base regional ao longo da Guerra Fria foram, na verdade, meros disfarces para a conduta das superpotências. Nenhum dos casos resenhados contou com a aceitação da comunidade internacional -especialmente em relação ao bloco adversário. Ademais, os países interventores baseavam suas razões jurídicas fundamentalmente no art. 51 da Carta da ONU (legítima defesa), e apenas de modo secundário nos arts. 52 e 53 (organizações regionais) (Sur, 2004).

A intervenção da Organização do Tratado do Atlântico Norte no Kosovo

Os fatos que levaram à Operação “Allied Force” no início de 1999 são bem conhecidos, podendo ser resumidos nos efeitos da política do então presidente da Iugoslávia Slobodan Milosevic para o Kosovo, que visavam responder às demandas dos kosovares por maior autonomia11 com repressão violenta e limpeza étnica. Neste contexto, enquanto o exército iugoslavo começava a alvejar especificamente os habitantes de etnia albanesa, a diplomacia europeia e norteamericana buscava um acordo que freasse a onda de violência. Nos primeiros meses de 1999, contudo, o governo sérvio embarcou definitivamente em uma política de expulsão em massa da população de origem albanesa do Kosovo, transportando milhares à força até a fronteira com a Albânia e obrigando-os a fugir para o outro lado, resultando em aproximadamente 200.000 refugiados, de uma população kosovar de cerca de 2 milhões (Webber, 2009).12 Com a expulsão dos monitores das Nações Unidas pelo governo sérvio e o fracasso de negociações em Rambouillet, a OTAN decidiu-se a intervir na região, alegando a questão humanitária como motivo imperativo (Haines, 2009).

No que foi a maior operação militar ocorrida na Europa desde a Segunda Guerra Mundial, a OTAN conduziu 38 mil surtidas aéreas, lançou mais de 200 mísseis e atacou a infraestrutura sérvia, além de posições do exército iugoslavo e centros militares de abastecimento e logística. O custo humano da “Allied Force” é estimado em 500 fatalidades civis, 800 feridos civis e algo entre 500 (segundo fontes sérvias) e 5000 (segundo a OTAN) baixas sérvias (Webber, 2009). Durante os bombardeios, porém, milhares de kosovares foram deliberadamente mortos por agentes ou paramilitares iugoslavos, e, segundo uma comissão independente estabelecida pela ONU logo após o conflito, nove em cada dez kosovares albaneses fugiram de suas residências (Webber, 2009). Os ataques da OTAN prosseguiram até junho de 1999, quando o governo iugoslavo aceitou um pacote de exigências que incluíam a retirada de seus militares do Kosovo e o início de um processo que conduzisse a um maior grau de autonomia para a região.

O Conselho de Segurança da ONU, que não autorizara tal ação (especialmente devido à oposição de Rússia13 e China), emitiu a Resolução 1244 após o fim dos conflitos, em que se absteve de apoiar ou criticar a ação da OTAN, limitando-se a dispor sobre providências que a ONU tomaria para administrar o território, possibilitar ajuda humanitária e auxiliar na reconstrução.14

O plano jurídico não revelou a mesma disparidade de forças que caracterizou a ação militar. A doutrina internacionalista mostrou-se extremamente dividida, em especial nos países que tomaram parte na ação.15 As críticas se fundaram na ausência de autorização do Conselho de Segurança e na consequente violação da Carta da ONU, enquanto que as opiniões mais benevolentes apontaram sobretudo a necessidade de uma reação à catástrofe humanitária. Neste sentido, os comentários de Bruno Simma (1999)16 e Antonio Cassese (1999)17 publicados à época da “Allied Force” são concordes quanto à ilicitude da operação por estar contra San Francisco, mas também entendem que havia uma justificativa moral forte para tal ação (Simma, 1999) (Cassese, 1999). Enquanto o primeiro pensava que a “solução” dada ao caso do Kosovo deveria permanecer isolada, como resposta ad hoc a um caso particularmente difícil e da qual não se deveriam extrair conclusões mais amplas para a ordem jurídica internacional (Simma, 1999). Cassese entendia que a atuação da OTAN nos Bálcãs poderia revelar-se o início de uma prática internacional conducente à aceitação da doutrina da intervenção humanitária (1999). Em relação mais próxima com o tema central destas páginas, Louis Henkin enfatiza o caráter multilateral da “Allied Force”, notando que a ação por organizações internacionais representativas pode constituir um desenvolvimento do direito internacional apto a superar o problema da inércia do CS perante situações que requerem urgentemente alguma ação militar para deter violações graves aos direitos humanos. Seria, assim, uma “exceção ao veto”18, admissível em caso de intervenção humanitária, e que poderia ser empregada na ausência de condenação explícita por parte do Conselho (Henkin, 1999).

Neste sentido, a intervenção da OTAN no Kosovo é representativa dos principais aspectos da discussão sobre a licitude da intervenção humanitária. Contudo, em relação à discussão sobre intervenção por parte de organizações internacionais, tem-se que o debate não avançou sensivelmente a partir desta crise. Isto porque a argumentação empregada pelos intervenientes para explicar sua conduta correu via de regra junto à trilha da intervenção humanitária, sem buscar justificativa autônoma no fato de a OTAN ser uma organização internacional de base regional. Possivelmente tal fato se deu por ter sido a motivação humanitária o verdadeiro promotor da ação (Haines, 2009). Mas também deve ser levado em conta que os artigos da Carta da ONU sobre a atuação de grupos de Estados em crises regionais são explícitos quanto à necessidade de anuência do Conselho de Segurança a qualquer medida tomada por tais entidades que implique no uso da força (arts. 52 e 53 da Carta). Ademais, o próprio Tratado da OTAN a estabeleceu como ente voltado à legítima defesa, e não à solução de crises regionais.19 Desta forma, mesmo que se admitisse uma aplicação extensiva do capítulo VIII da Carta da ONU, referente à ação de entes ou acordos regionais, ainda assim a OTAN teria dificuldades para enquadrar-se neste rótulo.20 Seja como for, ainda que de modo secundário em relação à controvérsia sobre a compatibilidade da intervenção humanitária com o direito internacional, a guerra do Kosovo gerou certos questionamentos acerca do papel futuro que organizações regionais seriam chamadas a desempenhar em conflitos localizados, bem como sobre os limites aos quais uma tal atuação deveriam ater-se.21

A atuação da Comunidade Econômica dos Estados da África Ocidental

A Comunidade Econômica dos Estados da África Ocidental foi fundada em 1975 pelo Tratado de Lomé, motivado por razões econômicas. Sem conseguir grandes resultados na integração do comércio entre seus membros ou na alegada finalidade da unificação monetária, a organização se ressentia de sua estrutura totalmente intergovernamental, na qual o órgão de cúpula integrado pelos chefes de Estado dominava todas as orientações políticas, e cada país membro mantinha o poder de internalizar as diferentes normas da entidade (Hartmann, 2010). Em relação à segurança coletiva, a abordagem da ECOWAS era basicamente interestatal, como definida por um Protocolo de Não-Agressão de 1978.

O quadro mudou em 1989, com a deflagração da guerra civil na Libéria. O conflito diferia dos padrões então comuns na África pelo fato de o Estado liberiano, incapaz de sustentar-se, haver implodido logo no início da guerra, que passou a ser travada por senhores da guerra visando não tanto tomar o poder, como apossar-se dos campos de extração de diamantes do país. Além disso, com o encerramento da Guerra Fria, nenhuma superpotência se mostrou disposta a intervir em apoio de qualquer das partes (Hartmann, 2010). Estas características tornaram a guerra civil liberiana uma ameaça à segurança regional, e os países da ECOWAS, após tentar encontrar uma solução negociada que fracassou, decidiram construir uma força de paz, com o inocente nome de “Grupo de Monitoramento da ECOWAS” (ECOMOG) que entrou na Libéria, sustentando ataques contra as várias facções durante dois anos.22

O ECOMOG não logrou, porém, resolver o conflito, e o Conselho de Segurança enfim agiu, apoiando os esforços da organização regional e instaurando um embargo de armas na Libéria.23 Quando isto também não funcionou, instituiu-se uma missão de paz das Nações Unidas, que funcionou basicamente como uma forma de adicionar contingentes de outros países às tropas do ECOMOG (Hartmann, 2010). Em 1996, chegou-se a um consenso mínimo entre os participantes da guerra e possibilitaram-se eleições, vencidas por Charles Taylor. A guerra civil, porém, prosseguiu.

A vizinha Serra Leoa também foi afetada pela lógica do conflito, e o presidente Kabbah, eleito em fins de 1996, foi deposto no ano seguinte por oficiais militares que instalaram o major Koroma no poder. A ECOWAS condenou o golpe e, quando o novo governo deu sinais de que não iria restaurar o presidente deposto, invadiu o país em março de 1998. Novamente, o Conselho de Segurança só tratou da questão após o fait accompli, encarregando o ECOMOG da estabilização do país e em seguida estabelecendo outra missão de paz (Hartmann, 2010).

No mesmo ano de 1998, o presidente da João Bernardo Vieira da Guiné Bissau pediu auxílio militar, primeiro ao Senegal e à Guiné com base em acordos bilaterais, e em seguida à ECOWAS, para controlar tumultos que aconteciam no país lusófono. Em resposta, Senegal e Guiné enviaram tropas ainda antes de qualquer decisão por parte da ECOWAS. Esta decidiu usar a mesma estratégia que a favorecera com o Conselho de Segurança, e legitimou retroativamente a intervenção. O estabelecimento da paz na Guiné Bissau provou-se um desafio, contudo, e a falta de apoio na Nigéria, que arcara com boa parte do esforço nas intervenções anteriores, terminou por impossibilitar que a ECOWAS reagisse quando um golpe de Estado depôs o presidente Vieira em 1999. Logo depois, os soldados da entidade regional foram retirados (Hartmann, 2010).

Em resposta a este fracasso, instituiu-se o Protocolo de Lomé sobre o Mecanismo para a Prevenção, Administração e Resolução de Conflitos, Manutenção da Paz e Segurança (1999). Este Protocolo reorientou a ECOWAS, ao menos no que diz respeito à segurança regional, rumo à supranacionalidade. Tal tendência fica especialmente clara na criação de um novo órgão, o Conselho de Mediação e Segurança, a ser integrado por 9 dentre os 15 Estados membros (art. 8° y 1°), podendo decidir, por maioria de dois terços (art. 9° y 2°), sobre todas as questões atinentes à paz e segurança na sub-região (art. 10° y 1°), inclusive sobre a realização de intervenções militares (art. 10° y 2° (d)). O Conselho de Mediação e Segurança reunir-se-á na presença de ao menos dois terços de seus membros (art. 9° y 1°), o que, combinado com a disposição sobre modo de decisão, pode acarretar em que uma resolução sobre intervenção em algum Estado membro seja aprovada por apenas 4 Estados.24

O “Mecanismo” previsto pelo Protocolo de Lomé pode ser iniciado em diversos casos, entre os quais a derrubada de um governo democraticamente eleito em algum Estado membro.25 O procedimento pode ser iniciado tanto pela organização quanto por algum de seus filiados, ou ainda por requisição da União Africana ou das Nações Unidas (art. 26). Em deferência à Carta de San Francisco, qualquer medida de intervenção tomada pela ECOWAS deverá ser imediatamente comunicada à ONU (art. 52 y 3°).

A ereção da manutenção da democracia (ao invés da mera manutenção da paz e segurança) como uma causa para uso da força é particularmente inovadora, e a ECOWAS achou por bem definir melhor tal conceito, muito embora se trate sabidamente do “arquétipo de um conceito universalmente contestado” (RIM, 2012). Com este intuito, os Estados da África Ocidental concluíram o Protocolo Suplementar de Dacar, o qual contém disposições surpreendentemente precisas sobre exigências constitucionais aos Estados membros, realização de eleições com supervisão obrigatória da ECOWAS, o papel das forças armadas e policiais em uma democracia, direitos econômicos, sociais e culturais, e a preservação do estado de direito. Declarando-se como parte integrante do Protocolo de Lomé (art. 46), a intenção deste Protocolo Suplementar parece ser a de prover os chefes de Estado da região de dados mais objetivos sobre os elementos fundamentais de uma democracia, de modo a possibilitar uma determinação acurada dos casos em que esta é violada.

Contudo, a adoção destes instrumentos não representou uma escalada imediata nas intervenções da ECOWAS. Dadas as dificuldades com que os membros se depararam nas operações já executadas, e a crescente má vontade da Nigéria, Estado mais poderoso do grupo, em suportar a maior parte das despesas, a ECOWAS passou a ser menos assertiva em suas intervenções. Um momento de destaque ocorreu em 2010, quando, no âmbito da Segunda Guerra Civil da Costa do Marfim, a ECOWAS ameaçou empregar a força contra o presidente Gbagbo, que se recusava a aceitar o resultado das eleições presidenciais e deixar o poder (AGNERO, 2010). Porém não foi necessária uma intervenção por parte da organização, pois o Conselho de Segurança preferiu adotar sanções contra o regime de Gbagbo e fortalecer uma missão de paz da ONU que já se encontrava no local. Através da Resolução 1962 (2010), a UNOCI foi instada a empregar todos os meios necessários à consecução de seu mandato de proteção a civis. Além disso, a resolução permitiu que tropas francesas estacionadas na Costa do Marfim apoiassem a UNOCI combatendo as forças leais a Gbagbo (RIM, 2012, pag. 689). Frise-se que estas medidas foram tomadas contra a oposição declarada de Laurent Ggabgo, que não havia deixado o poder, embora não fosse mais reconhecido como presidente pela comunidade internacional.

A ECOWAS desempenhou um papel secundário no conflito do norte do Mali em 2012, exerceu forte pressão diplomática contra um golpe de Estado na Guiné-Bissau no mesmo ano, e não se dispôs a tomar em armas contra o grupo islamista Boko Haram. Em 2017, porém, o grupo retornou a uma intervenção no estilo tradicional, quando suas tropas ingressaram no Gâmbia para forçar o governante Yahya Jammeh a ceder o poder ao novo presidente eleito, o que foi obtido em poucos dias (e.g. Williams, 2017; Brunner, 2018).

Contudo, as operações na Libéria, Serra Leoa e Guiné Bissau demonstraram um mesmo padrão de intervenção por parte de uma organização internacional de base regional em uma crise localizada. Nos três casos, o Conselho de Segurança não só se absteve de reprovar a ação, como ainda se referiu elogiosamente aos esforços dos países da região, mesmo diante de fracassos como na Guiné Bissau. Tais ações da ECOWAS foram vistas favoravelmente pelas Nações Unidas pois representam uma tentativa, embora imperfeita, de uma solução regional às crises da África Ocidental, envolvendo menos recursos e capital político da ONU, que pode dirigir suas forças e recursos para outras regiões.26 Pensa-se que uma abordagem de países da região também facilitaria a resolução dos conflitos. Em parte, isto ocorre na ECOWAS, com numerosos acordos sendo promovidos pelo grupo, graças também à política do bloco de designar um de seus chefes de Estado para moderador principal de cada crise, prestigiando os esforços envidados.

Por outro lado, a ECOWAS sofre com falta de recursos e de contingente militar. Seus membros com menor potencial econômico frequentemente contribuem apenas simbolicamente para a implementação das políticas comuns, deixando que os gastos (e as perdas humanas) se concentrem nos poucos Estados mais capacitados, como Nigéria, Senegal e, mais recentemente, Chade. Outro problema na atuação do bloco está na divisão entre países anglófonos e francófonos, que se traduz em alianças mais próximas com Reino Unido (através da Commonwealth) ou com a França. É preciso lembrar que as primeiras intervenções da ECOWAS foram objeto de duras discussões dentro do grupo, pois os Estados de língua francesa tendiam a desconfiar dos objetivos da Nigéria, vista como um poder regional que buscava obter ganhos políticos de sua proeminência no ECOMOG (Petit, 2000) (Osadolor, 2011). Atualmente, a organização tem atuado como uma espécie de “bombeiro” (Hartmann, 2010), valendo-se de sua proximidade com focos de novas crises para apaziguar os conflitos até a chegada de missões de paz das Nações Unidas ou do apoio de alguma potência externa, como a França.

Por fim, vale registrar o pensamento de Yoram Dinstein (2011), para quem a atuação da ECOWAS só encontra guarida nos tratados daquela organização que criam um sistema de legítima defesa coletiva entre seus membros. Para ele, todas as intervenções promovidas pela ECOWAS ou podem ser explicadas em termos de exercício do direito de legítima defesa coletiva, ou na figura juridicamente inócua da intervenção a pedido, ou então seriam ilegais. Dos fatos acima narrados, fica claro que não se trata de legítima defesa nem de intervenção a pedido. Portanto, parece que o jurista citado só reconhece legalidade em ações empreendidas por grupos regionais com autorização prévia do CS.

Conclusões

Diante do que se escreveu até o momento, parece evidente que a prática internacional não respalda uma atuação autônoma das organizações regionais que faça uso da coerção armada, ainda que para solucionar crises regionais. O comando dos arts. 52 e 53 da Carta da ONU, que subordina entidades e acordos regionais à autorização do CS, segue em pleno vigor.

É possível encetar discussões no que se refere à legalidade de intervenções por motivos de proteção à população contra violações graves e massivas de direitos humanos. Contudo, como foi visto no caso do Kosovo, a doutrina internacionalista habitualmente aborda esta questão do ponto de vista da causa apresentada como legitimadora da ação bélica, e não do número de atores. Em outras palavras, no caso da intervenção humanitária é mais importante saber se a defesa da população contra seu governo é um motivo válido para a guerra ou não, do que verificar se a intervenção é unilateral ou tomada por uma organização regional. Caso se determine que a intervenção humanitária viola o direito internacional, então mesmo organizações internacionais estarão proibidas de executá-la. Caso se pense, pelo contrário, que tais intervenções por razões de humanidade são compatíveis com a ordem jurídica internacional, então elas poderão ser realizadas, em princípio, tanto por Estados quanto por organizações.

Outro caso que deve ser diferenciado refere-se ao exercício da legítima defesa coletiva. Caso o tratado constitutivo de uma organização internacional preveja o dever de auxiliar um Estado membro que se encontre sob ataque -externo ou interno -, os demais estarão intitulados ao exercício da legítima defesa coletiva. Neste caso, a situação deve ser examinada pelo prisma do art. 51 da Carta da ONU, sem colocar em causa a existência de um possível direito autônomo de ação por parte da organização regional. Como visto, foi a interpretação que Yoram Dinstein deu às intervenções realizadas pela ECOWAS.

Para além dos casos da intervenção humanitária e legítima defesa coletiva, a dúvida pode estar em casos confusos, como naqueles examinados acima em relação à África Ocidental. Em situações de crise profunda, nas quais não é possível determinar com clareza quem constitui o governo “correto” do país (o uso de um termo não jurídico é proposital), ou qual a extensão do controle e responsabilidade do governo sobre seu território, poder-se-ia talvez pensar na legitimidade de uma intervenção por uma organização regional da qual o Estado conflagrado faça parte. Embora a Carta da ONU não mencione tal possibilidade, a atitude reiterada do CS perante o uso da força pela ECOWAS não pode passar despercebida. Aqui, não houve somente abstenção de opinião, como no caso da guerra do Kosovo, mas autêntica legitimação posterior, havendo o trabalho da ECOWAS - repita-se - sido louvado mesmo quando tais tropas não conseguiram pôr fim às crises. Além disso, não parece consentâneo com os princípios da Carta da ONU, mormente com sua intenção declarada de evitar o “flagelo da guerra”, permitir que uma crise interna, passível de solução regional, se alastre e atinja outros países da região pelo simples fato de que membros do Conselho de Segurança se mostrem egoístas no uso de seu poder de veto. Uma tal solução faria dos membros permanentes senhores do destino de boa parte dos países não desenvolvidos, e é sabido que tal possibilidade constitui a maior fonte das críticas dirigidas ao CS e à própria ONU.

Poder-se-ia argumentar que uma solução juridicamente mais adequada estaria em considerar que as organizações regionais gozam de uma presunção de boa fé no exercício de seus poderes relativos à paz e segurança regionais. Isto é, uma eventual ação coercitiva tomada em seu âmbito, desde que voltada à solução de litígios em cenários confusos, deveria ser tida como legal desde que uma instância universal apta - o Conselho de Segurança ou a Corte Internacional de Justiça - declarasse sua incompatibilidade com os princípios das Nações Unidas. Desta forma, prestigiar-se-iam os modos locais de solução de conflitos, evitando-se a multiplicação ad infinitum de missões de paz, fundos e comitês mantidos pela ONU e custeados por todos os Estados membros, em prol de instituições regionais que gozariam de uma maior legitimidade junto à população envolvida. O Conselho de Segurança, neste esquema, permaneceria como supervisor último do esforço regional, podendo intervir quando necessário. Mas, neste caso, o poder de veto estaria a favor da organização regional, pois uma resolução condenatória do CS não poderia ter a oposição de nenhum dos membros permanentes.

Porém, reconhece-se que este modelo não está livre de críticas. Além da falta de previsão na Carta de San Francisco, a principal é relativa ao perigo, já mencionado no início destas páginas quanto à intervenção humanitária, de que a preponderância do aspecto material (necessidade de manter a paz) sobre o formal (autorização do CS) abra o caminho para abusos cometidos por organizações regionais. Afinal, caso o Conselho seja limitado a um poder de censura, e este seja sujeito ao veto, o perigo de uma atuação meramente política do CS subsiste, mas agora favorecendo “o outro lado”: se na concepção tradicional, a inércia do órgão central da ONU favorece o prosseguimento do conflito, num panorama de proeminência das organizações regionais, a falta de uma resolução do CS levaria à legitimação da ação coercitiva empreendida pelo grupo regional - que, num primeiro momento, representaria uma escalada no conflito, pois mais uma parte beligerante haveria entrado no jogo (Kolb, 2005).

A melhor solução parece estar em um meio termo: por um lado, é preciso reafirmar a validade e vigência do capítulo VIII da Carta da ONU. Assim, enquanto a comunidade mundial não decidir de outro modo, competirá ao Conselho de Segurança dar a última palavra em assuntos relacionados à paz e segurança internacionais. Isto posto, nada impede que o CS conceda sua aprovação a ações já empreendidas por organizações regionais.27 Uma resolução neste sentido teria o condão de sanar qualquer dúvida sobre a legalidade destas. Enquanto o Conselho de Segurança não se manifestar sobre a ação da organização internacional, esta não será automaticamente tida como legal - mas também não merece necessariamente a pecha de ilegalidade. Uma tal ação será tolerada enquanto contribuir efetivamente para a solução do conflito.

Neste sentido, é preciso considerar critérios objetivos para aferir a legalidade da operação,28 como: se a crise em questão justificava uma ação emergencial; se a intervenção foi decidida de acordo com as regras do ente regional; se ocorre em território de Estado membro da organização; se a intervenção é dirigida contra o responsável pela deflagração ou manutenção do conflito; se há a participação de todos ou de uma parcela expressiva dos membros da organização; se as operações militares são conduzidas grosso modo de acordo com o direito internacional humanitário; eventualmente, se a organização internacional possui tradição na condução de operações deste tipo e na defesa da democracia; se a situação local não piorou sensivelmente com a intervenção, sendo que as causas desta piora já poderiam ter sido previstas antes da realização da mesma.

Quanto mais destes critérios forem preenchidos, maior será a legalidade da intervenção. Em um extremo, seria preciso uma resolução expressa do CS para afirmar sua ilegalidade. No outro, o mero emprego da força sem autorização daquele órgão já teria configurado a violação à Carta das Nações Unidas. Pode-se objetar que falta uma resposta definitiva, no modelo sim/não, acerca da legalidade de emprego da força por entidades regionais. A isto se responde que não há como se subtrair ao exame dos fatos em cada caso. Reconhece-se o perigo, apontado por Bruno Simma, de acabar fazendo com que o direito mude para melhor se adequar a cada novo caso dramático que surgir (1999). Mas o emprego dos critérios acima descritos visa conferir maior objetividade ao estudo da realidade.

A solução aqui apontada traz consigo outros questionamentos, que estas páginas já não podem abarcar, como a dúvida sobre a possibilidade de controle de legalidade das ações do Conselho de Segurança. Evidentemente que, se aceita a interpretação formulada acima, o CS poderá ver-se acompanhado por organizações internacionais quando tratar de uma crise. Como avaliar uma situação hipotética em que o ente regional preencha todos os requisitos acima apontados, obtenha sucesso na resolução do conflito e, ainda assim, o Conselho venha a desestimar sua atuação? Talvez as organizações regionais, na esteira da tentativa realizada pela ECOWAS na década de 1990, venham a jogar um papel mais importante na manutenção da paz, levando a comunidade internacional a repensar o papel de primazia absoluta e incontrolada reservado ao Conselho de Segurança.

1 Artigo de reflexão vinculado ao Programa de Pós-Graduação em Estudos Marítimos da Escola de Guerra Naval (Rio de Janeiro, Brasil).

3 Durante a Guerra da Coreia, o CS permitiu que as tropas dos Estados que se dispuseram a atuar contra a Coreia do Norte fizessem uso de bandeiras e insígnias da organização. Ainda assim, o comando militar não se encontrava em mãos internacionais, havendo sido liderado pelos EUA.

4 Existe uma controvérsia quanto à abrangência do termo “acordos ou entidades regionais”. Simma (1999), negando-o em relação à OTAN) e Petit (2000), afirmando que é necessário um reconhecimento expresso por parte da ONU) adotam uma concepção restritiva. Já Dinstein (2011) entende que a redação do artigo permite uma interpretação ampla, sendo que “acordos” designaria a mera existência de tratados, ainda que sem uma instituição. Petit (2000) menciona um reavivamento do cap. VIII após a Guerra Fria, com numerosas organizações sendo designadas, por si sós ou pela ONU, como “acordos ou entidades regionais” nos termos dos arts. 52 e 53.

5 Yoram Dinstein recorda que a utilização mais chamativa deste dispositivo se deu no marco da Guerra da Bósnia, durante a qual a Resolução 816 (1993) convidava os Estados membros, agindo individualmente ou no seio de organizações regionais, a fazer respeitar através do patrulhamento aéreo e de “todas as medidas que se fizerem necessárias” as zonas seguras estabelecidas no território da Bósnia-Herzegovina (Dinstein, 2011).

6 Trata-se da Organização das Nações Unidas para a Supervisão da Trégua (UNTSO), estabelecida em Jerusalém e cujo mandato segue em vigor.

7 Tratava-se do marechal Ivan Koniev, um dos mais famosos comandantes do Exército Vermelho na Segunda Guerra Mundial. SEBESTYEN, 2008, pag. 269.

8 “The formation of an inter-American force will signify ipso facto the transformation of the forces presently in Dominican territory into another force that will not be that of one state or of a group of states but that of the Organization of American States, which Organization is charged with the responsibility of interpreting the democratic will of its members.” OEA. Resolução de 06.05.1965. Disponível em: goo.gl/2oF9qL.

9 Tratava-se de uma radicalização do regime comunista instaurado com o golpe de Estado de 1979, no qual Maurice Bishop tomara o poder na ilha, para ser assassinado em outubro de 1983. Sua morte, e a subsequente tomada do governo por uma facção mais radical de seu movimento, levou à invasão dos EUA (Pereira, 2009).

10 “Uma força de cerca de 400 marines e 1.500 pára-quedistas - conjuntamente com 300 soldados de Estados vizinhos das Caraíbas -chegou a Granada e, na sequência de três dias de luta, o autonomeado Conselho Militar Revolucionário foi deposto.” (Pereira, 2009). Já Carter, Trimble e Bradley mencionam 8.000 soldados norte-americanos e 3.000 caribenhos (Carter, Trimble y Bradley, 2003).

11 Tais demandas eram expressas tanto de forma pacífica quanto através do clandestino Exército de Libertação Kosovar, que adotava por vezes métodos considerados terroristas em seus ataques às instituições representativas do governo de Belgrado, em especial policiais sérvios e contingentes das forças armadas.

12 Carter, Trimble e Bradley falam em 700.000 refugiados. A discrepância deve-se provavelmente à diferença entre refugiados em países estrangeiros e deslocados internos - com a maior dificuldade na identificação destes últimos. (Carter, Trimble e Bradley, 2003).

13 Vale mencionar que, dois dias após o início dos bombardeios à Sérvia, um projeto de resolução introduzido pela Rússia no CS condenando a intervenção somente obteve o apoio de China e Namíbia, além do Estado autor. Alguns autores enxergam nisso uma afirmação de certa legitimidade na ação da OTAN (Henkin, 1999).

14 “The text of the resolution does not provide any indications that the air operations against Yugoslavia were lawful and it may be assumed that Russian support for the resolution would not have been forthcoming if there had been such indications. The Security Council was acting by virtue of Chapter VII of the Charter. The political bases of the resolution are provided by the two sets of principles accepted by the Yugoslav Government: see Annexes 1 and 2 of the Resolution. The text of the Resolution makes no reference either to the recent armed conflict or to the termination of the air operations in Yugoslavia. There are, however, certain references (in the Annexes) to the ‘withdrawal from Kosovo of military, police and paramilitary forces’. The action begun on 24 March 1999 was not authorised by any Security Council resolution [...]. The post-war resolution adopted on 10 June did not provide any retroactive legitimacy.” (Brownlie e Apperley, 2000).

15 Haines (1999) aponta quatro grandes “correntes de opinião” sobre o tema: a primeira condenando a operação por violar a literalidade da Carta; a segunda defendendo sua legalidade com base em um direito costumeiro de intervenção humanitária; a terceira asseverando que, embora o direito consuetudinário ainda não existisse, a “Allied Force” teria contribuído para desenvolver a prática estatal na matéria evidenciando a emergência de tal instituição; e a quarta descrevendo a conduta da OTAN como uma resposta ilegal, porém legítima, a um estado de coisas excepcional.

16 O texto do atual juiz da Corte Internacional de Justiça foi escrito em março de 1999, antes do início dos ataques da OTAN. Ele analisa basicamente a ameaça de uso da força, que então já fora feita de forma clara pela Organização.

17 O autor, que depois seria presidente do Tribunal Penal Internacional para a Antiga Iugoslávia, escreveu durante a condução da campanha de bombardeios pela OTAN.

18 A expressão é do autor mencionado: “But might we pursue an exception to the veto, as regards humanitarian intervention, in practice if not in principle?”

19 O Tratado de Washington de 1949, que estabeleceu a OTAN, pode ser consultado em: http://www.nato.int/cps/en/natolive/official_texts_17120.htm.

20 O raciocínio é de Bruno Simma, o qual alerta, porém, que a OTAN vem redefinindo seu escopo de atuação com base no princípio de que seus membros, agindo por consenso, são livres para reinterpretar o âmbito de abrangência do tratado fundacional (Simma, 1999). A atuação da Organização na Guerra Civil Líbia em 2011, embora autorizada pelo Conselho de Segurança, ocorreu em um território não europeu, ultrapassando os limites físicos bem definidos no art. 6° do Tratado de Washington, e pode ser vista como consequência desta mudança nos propósitos da OTAN.

21 “At the same time, it is important to acknowledge that the Kosovo intervention may represent a sea change in the responsibility of multilateral organizations to attempt to thwart ethnic slaughter--even if multilateralismo takes a different form. Kosovo did not happen in isolation, but after the United Nations was unable to act effectively in Rwanda and Bosnia.” (Wedgwood, 1999).

22 No momento da intervenção, o governo era exercido por Samuel Doe, cujos poderes eram amplamente contestados e que não possuía qualquer efetividade para além da capital Monróvia. Embora a operação tenha ocorrido com consentimento deste presidente, é altamente questionável se isto constitui um “consentimento” para efeitos de descaracterizar uma intervenção estrangeira, pois não traduziría a aquiescência “do Estado” (Pereira, 2009). Marcelo Böhlke refere que, no momento em que solicitou a intervenção, o governo Doe já havia “entrado em colapso”, e que “a decisão de intervir não fez qualquer referência à solicitação apresentada por Doe” (Böhlke, 2011).

23 Através da Resolução 788 (1992), que também mencionou o cap. VIII da Carta (Pereira, 2009).

24 Observe-se que, segundo o Protocolo Suplementar de Dacar, em seu art. 45, um Estado que sofra uma ruptura abrupta de sua democracia pode ser suspenso de todos os órgãos da ECOWAS, perdendo por conseguinte o poder de voz para discutir uma possível intervenção em seu território. Tal sanção foi empregada contra o presidente Laurent Gbagbo na crise da Costa do Marfim, em 2010-11 (RIM, 2012).

25 Protocolo de Lomé: Art. 25. Conditions For Application:

The Mechanism shall be applied in any of the following circumstances:

(a) In cases of aggression or conflict in any Member State or threat thereof; (b) In case of conflict between two or several Member States; (c) In case of internal conflict: (i) that threatens to trigger a humanitarian disaster, or (ii) that poses a serious threat to peace and security in the sub-region; (d) In event of serious and massive violation of human rights and the rule of law; (e) In the event of an overthrow or attempted overthrow of a democratically elected government; (f) Any other situation as may be decided by the Mediation and Security Council.

O lado negativo é enfatizado por Petit (2000), que critica o fato de a ONU aproveitar a presença da ECOWAS para desinteressar-se pelos problemas regionais africanos, no que seria uma “versão hipócrita do [lema] ‘A África para os africanos’” (tradução livre).

26 O lado negativo é enfatizado por Petit (2000), que critica o fato de a ONU aproveitar a presença da ECOWAS para desinteressar-se pelos problemas regionais africanos, no que seria uma “versão hipócrita do [lema] ‘A África para os africanos’” (tradução livre).

27 Acredita-se que tal poder encontra-se abarcado pela amplíssima redação do art. 39 da Carta da ONU, pelo qual “O Conselho de Segurança determinará a existência de qualquer ameaça à paz, ruptura da paz ou ato de agressão, e fará recomendações ou decidirá que medidas deverão ser tomadas de acordo com os Artigos 41 e 42, a fim de manter ou restabelecer a paz e a segurança internacionais.” Caso entenda que a melhor medida para manter a paz seja o reconhecimento de uma ação coercitiva empreendida por organização regional, o Conselho pode legitimá-la.

28 Também Antonio Cassese recorreu à listagem de critérios de legalidade provável (a expressão não é dele) para determinar quando o recurso à força sem autorização do CS poderia vir a ser justificada em um futuro próximo (Cassese, 1999).

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